quarta-feira, 17 de junho de 2009

Odisseia no Deserto [III]

«Março

01/03/47
1:30h. Partimos para Bamaco. Aqui viaja-se de noite porque os 60 graus do dia acabam com qualquer pneu. À frente, hordas de macacos e caça diversa atravessavam a estrada. De dia, escondíamos-nos à sombra, calibrando sempre os pneus.

02/03/47
5h. Chegámos a Bamacom, sede de Governo, centro muito importante de comércio. Rio Niger. Caminho de Ferro Dakar (1.230 km), através da qual se exporta algodão e marfim, peles, gado, sal e amendoim. Hospital para malucos. 25.000 habitantes, 800 brancos. Tive necessidade de gasolina, tudo fechado. Tenho febre de 40 graus (a malária que apanhei em 37, na Pérsia). Consegui 100 l de gasolina. Aconselham-me a seguir pela linha férrea, mas não acatei. Decidi partir às 4h, mas, apesar da febre, consegui dormir um pouco.

03/03/47
18h. Parti fraco, agarrado ao volante. Sabia que o tempo estava contra mim. Às 22h parei. Via manchas escuras e perdi o controle do volante.

05/03/47
7h. Marek estava acordado. Prosseguimos. Macacos na estrada. Parei para fotografá-los, mas começaram a atirar pedras. Corri. Tomei banho no rio Senegal. Balofobei, cidade de 1.800 habitantes. Na confluência dos rios Bafing e Bakoi ganha novo nome: Senegal. Após a travessia, deitámo-nos à sombra das mangueiras.

06/03/47
Chegada a Keys, porto do rio Senegal. Temperatura 47 graus à sombra. Mercado importante e caminho de ferro até Dakar. Só me restavam 200F em notas. Precisava de gasolina, comida, etc.. Cheques, nem pensar. 50 l de gasolina é o que restava. Daria para chegar a Tambakunda, a 300km? Às 17 h partimos. Chegámos às 21h a uma outra travessia. Aqui havia controlo de documentos, mas o uísque era bom. Custou 15F. Sobraram 15F. Vimos novamente as coisas de todo dia: fogo, caça nas matas.

07/03/47
De madrugada chegámos a Tambakunda e dormimos no carro. Por lá passa o caminho de ferro até Dakar. Troquei um cheque e pude comprar 100 l de gasolina. Havia 10 l no tanque. Comprámos comida e conhaque. Fizemos uma visita à cidade e à plantação de sementes oleoginosas.

08/03/47
Partimos às 8h. A paisagem começa a mudar, aparecem árvores verdes. A caça mais conhecida na região é a hiena e o porco do mato. O carro sofre, passando por buracos, pedras e vales, mas está firme, funcionado perfeitamente. Chegámos a Kafrine Koalum às 12h. Porto no rio Saloum. Maior centro comercial de amendoim. Sede do município de Tamba. São 290 km, mas nós fizemos mais de 360 km. Depois de lubrificar e inspeccionar o carro, seguimos viagem.

09/03/47
7h. Último troço - a via Transafrikana. Na estrada o asfalto era bom. A paisagem nova, verde por todos os lados. Encontrámos os primeiros carros e o mar estava próximo. Às 16h chegámos a Dakar. Acariciei o carro e agradeci a bonita viagem feita. Só nós sabíamos o esforço feito, o sofrimento com pedras, areias, uma verdadeira olimpíada.

Domingo, hotéis cheios. Saímos da cidade. Banho de mar. O Škoda acolheu-nos. De manhã vi que dormimos ao lado do cemitério. Fomos cordialmente recebidos em Dakar pelo engenheiro Franha, que nos sugeriu um hotel, o Bachya.

Dakar é a capital da África Ocidental Francesa, com 4.800.000 quilómetros quadrados e 15.500.000 habitantes. O porto mais importante de ligação com a América do Sul. Sede do governo federal, forças armadas e centro comercial. Interesse enorme por carros.

Esperámos 7 semanas por um navio e não pudemos embarcar o carro. Por isso deixei-o com o Sr. Franha e apanhei um avião para o Rio de Janeiro. O carro será embarcado no próximo navio. Em Dakar consertei os carros da Bachya, estavam em condições lamentáveis. Depois dos dias quentes e noites escuras, tenho saudades do Škoda 1101. Aguardo o seu desembarque aqui, na cidade mais bonita do mundo. Espero revê-lo em breve, quando as luzes dos Cadillacs, Buicks e Studebakers empalidecerão em confronto com o meu pequeno Škoda 1101.»

Oldrich Kyllar, 1947.


Resta dizer que depois desta odisseia, Jean Marek regressou a França, enquanto Kyllar se mudaria definitivamente para o Rio de Janeiro, onde viria a constituir família. Oldrich nunca se separou do seu fantástico Škoda 1101, que ainda hoje faz parte da família. Entretanto, o automóvel foi integralmente restaurado pelo seu filho Ralf, devolvendo-lhe a compleição que faz jus à sua enorme bravura mecânica.

Nota: o texto de Oldrich Kyllar aqui transcrito foi revisto para português de Portugal. A versão apresentada por Deco Muniz, em português do Brasil pode [e deve] ser lida em www.zone.com.br

[foto: www.flickr.com]

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