quarta-feira, 17 de junho de 2009

Odisseia no Deserto [II]

«Fevereiro

05/02/47
Saímos de Alger rumo a Oran. Bela estrada, muito bem asfaltada, com inúmeras curvas serpenteando em subidas e descidas ao longo do mar. Antes de Oran, virei em direcção a Maskaru, onde chegámos à noite, depois de percorrermos 467 km.

06/02/47
Às 7 da manhã, partida de Maskaru. Encontrámos as primeiras caravanas de camelos. Passámos por Kreidar, Mecheria e Ain Safra, que significa Fonte de Areia, porque da rocha sai areia que o vento espalha pela vizinhança. Foi o primeiro lugar onde fizemos reparações nos pneus, depois de mais 335 km percorridos. Entre Maskaru e Ain Sefra a estrada é muito má e há muitas pedras. Tocou-me no ombro um jugoslavo que vivia há 25 anos em Ain Sefra. Fiz o meu último jantar europeu com ele.

07/02/47
7 horas. Saio da casa do jugoslavo depois do repasto, com um bule de café e pão. A estrada cede lugar à areia. Meia-hora de atraso, 30 graus à sombra. Segui através de Jenie até Colomb-Bechar. Fui recebido com cepticismo pela Compagnie Générale Transsaharienne. Olharam para o automóvel e disseram:
«Não tente atravessar o Sahara. Para tal, são necessários carros especiais». Queriam que eu esperasse 14 dias pela próxima caravana. Consegui convencer o Director a deixar-me seguir, mas ele impôs condições e nosso Consulado garantiu 75.000 FF (Francos Franceses), caso houvesse necessidade de ajuda. Depois de muita negociação, fizemos um contrato - terei que passar em 6 dias pelo pior troço do Sahara. Só o contrato custou 2.500 FF. Se em 6 dias não chegar à estação no final do Sahara, eles partirão à minha procura com aviões e carros especiais. Por cada quilómetro de buscas serão cobrados 75 FF de custos. Tive que pagar antecipadamente a gasolina que abastecerei nos postos. O Director da Transsaharienne chamou a atenção para o facto do Škoda ser o primeiro carro pequeno que tentaria a travessia. Não confiaram e prometeram que viriam atrás de nós. Atestei gasolina e preparei 20 litros de água para o motor e 10 para mim e para o Marek. Também comprei 2 tábuas para ter como me socorrer caso me atole na areia.

08/02/47
Saí de Colob-Bechar às 13.30h. Às 18h cheguei a Benis-Abbes, 240 km de distância. Benis-Abbes é uma velha fortaleza em forma de castelo de barro caiado de branco, com cercas ao redor. Linda vista, que contrasta ao fundo com o céu africano escuro. Em Benis-Abbes existe um posto da Transsaharienne, administrado por uma mulher branca de 35 anos, que vive lá há muitos anos. Ligação com o mundo, só através do rádio e, às vezes, com viajantes que vão ao seu bar beber vinho.

09/02/47
7 horas. Partimos para o deserto e passámos o dia todo a medir a pressão dos pneus. O sol queima sem misericórdia. O calor é horrível durante a viajem e os pneus já furaram 2 vezes. Às 16 horas chegámos a Addrar, depois de percorrer 360 km. À noite não saio mais. A possibilidade de me perder é grande. Olhamos a aldeia onde um nativo nos convidou para tomar chá. Pelo costume local, somos obrigados a tomar 3 chávenas de chá. Há danças nativas e músicas especiais. Visito o túmulo do checo Sedlar, da firma Bachya (fábrica de sapatos), que faleceu aqui em 1938. Tentam novamente convencer-me a não prosseguir. Garantem que me irei atolar na areia e morrer. Os lábios começam a ressecar e ficam em carne viva. 40 graus e toda a atmosfera flutua. Areia com vento. O rádio-telegrafista tenta assustar-me contando casos horrorosos.


10/02/47
Percorri 142 km e chegámos a Reggan. No resto do dia executei reparações no carro.

11/02/47
Às 5 h deixamos Reggan. Chegámos às grandes dunas de areia. O vento brica com a areia. A impressão que se tem é de nevasca. Às 12h atolámos-nos bem fundo na areia. Fizemos bom uso de nosso macaco que pode levantar o carro de lado. Outro lugar para levantar não serviria para nada. Ao levantar de lado, enfia-se a tábua sob as rodas. Partimos. O mais importante era manter uma velocidade elevada para que o carro ficasse na superfície da areia sem se afundar. Quando chegámos às maiores dunas o carro ficou asfixiado. Tem que se ser muito hábil nas passagens de caixa. Nas vezes que consegui arrancar em 1ª, o esforço foi enorme, mas soube bem. Viajando pelo Sahara vê-se ao longe os contornos de um lago, por causa da evaporação da areia. Por duas vezes perdemos o caminho. Pela localização do sol concluímos que estávamos ao contrário. Retornámos seguindo o nosso próprio rasto. Prosseguimos para Bidon 5. Estávamos com muita sede. Havia pouca água, mas o pior foi o desgaste rápido dos pneus. O carro estava bastante carregado: 250 Kg + 80 l de gasolina + 20 l de água para o motor + 15 l de óleo. Apesar de tudo, o carro fazia grandes saltos na areia. Motor perfeito, não sobreaqueceu.
Às 15h chegámos a Bidon 5 com dificuldades, depois de rolar 525 km. A performance foi extraordinária. Bidon 5 tem este nome porque a primeira caravana que aqui passou deixou 5 barris de gasolina vazios, que serviram posteriormente para construir casebres de lata. No local há rádio e a tripulação militar é de 3 homens, mais um civil para o posto da Transsaharienne e um suíço que espera há anos com material para transporte ferroviário a ser construído. Boas vindas cordiais. 3 jovens franceses em serviço há 3 meses, ficaram felizes por nos ver. Jantar solene - comemos carne de gazela. Jogamos boliche francês, o que fez bem às mãos endurecidas de tanto segurar o volante. A Companhia Ferroviária do suíço tentou abrir um poço, tendo encontrado água salgada a 250m de profundidade. Agora perfura outro poço, já a 1.000m de profundidade. Antes das 18h o rádio avisou Colomb-Bechar de nossa chegada.

12/02/47
Partimos às 6:30h e às 10h atolámos na areia. Custou uma hora até sairmos dali. Deste lugar, levei como lembrança a areia do Sahara. Estou já há 5 dias no deserto. Além dos postos, não encontramos ninguém. Aqui não chove há 7 anos. Às 15h, Tessalit, onde fizemos um curto descanso. Às 18 chegamos a Aguelhoc, e isto sem um pneu. Sobraram 4 pneus na reserva. Durante a viagem vimos um carro da Transsaharienne que se atolou e foi abandonado.

13/02/47
De manhã coloquei os pneus e inspeccionámos o carro. Às 10h saímos. Já vi que os pneus não vão durar até o fim do Sahara. Os pneus eram belgas e lamentei bastante não ter instalado pneus reforçados. Logo após a saída furou um pneu dianteiro, que reparei. A areia diminuiu, mas foi substituída por pedras. De tarde rebentou a câmara de ar traseira esquerda. Coloquei um pneu dentro do outro e 2 carcaças velhas e seguimos em frente. Às 20h desmancharam-se estes pneus com 210 km percorridos.

14/02/47
Decidi chegar mesmo sem pneus, sem água e sem comida. O perigo é sermos procurados (a 75 FF por quilómetro) se não chegarmos a Gao no dia seguinte. Desloquei os pneus para trás e na dianteira prossegui só com as jantes de aço das rodas. Para aliviar o peso do carro, atirei as tábuas fora e outras coisas dispensáveis. A água potável chegou ao fim no dia anterior e as conservas checas também. O sol queimava barbaramente. Aferi constantemente a calibragem dos pneus traseiros, mas mesmo assim, um deles estoírou de novo. Levou bastante tempo até encontrar o furo na câmara, pois já não tinha mais saliva. Marek ficou dentro do carro e contou o tempo que nos restava. Depois levantou-se, pegou no cobertor vermelho e pôs sobre o carro. Isto para que o avião, nas buscas, nos visse melhor... A situação estava séria, sem água, sem comida, sem pneus (o pior), com os lábios estoirados, num tremendo calor. Será que vamos conseguir sair daqui?
A nossa aparência era das piores. Estava cheio de mazelas, pois deitara-me no chão para montar as rodas. Debati-me com a câmara por 3 horas, até encontrar o furo. Depois prossegui a 20 km/h tendo em mente o contrato com a Transsaharienne a 75FF/km. Sabia bem que não poderia pagar e que perderia o carro e o resto, como outros que fracassaram. O pior troço já estava atrás de nós, faltando apenas chegar ao posto em Bourem, onde passavam os carros da Transsaharienne. Não sei que fim teria levado se não tivesse saído deste lugar. Faltava ainda um dia de prazo para acabar o período, portanto a única saída era ir em frente. A viagem era cansativa. Procurava evitar as pedras, mas o motor recebia grandes choques. Sabia que o carro conseguiria ultrapassar todas essas dificuldades. A preocupação era com as jantes das rodas. Depois de 50 km rebentou o aro da jante direita. Troquei a jante por a de um pneu de reserva e segui em frente. Depois perdi o escape. O motor continuou em perfeito funcionamento, sem aquecimento, apesar de usar 1ª e 2ª em vários lugares. A cada 10km eu inspeccionava tudo. Até ao posto final faltavam apenas 4 km. Depois de mais um conserto dos pneus, atravessei esses 4 km numa hora. A estrada estava tremendamente pedregosa e tive medo que o bloco do motor partisse. O carro parecia um tractor, mas íamos sempre em frente. No caminho, gazelas e antílopes. Em Borem fomos recebidos por um jugoslavo de maneiras muito amigáveis. Bebemos, comemos e pernoitámos. Dormimos numa tenda, no chão. Que bom! O jugoslavo está aqui sozinho, comandando 100 soldados cuja tarefa é manter a estrada. Os soldados são negros, sem uniforme, sem armas. Servem por 2 anos.

15/02/47
De manhã, 20 negros carregaram o meu carro no camião da Cie. Transsaharienne, que o levou a Gao. São 98 km. Conforme soube, a Cie. Transsaharienne perguntava pelo rádio pela nossa chegada. Caso não fosse confirmada, estava já a ser preparada a expedição para partir no dia seguinte. Graças a Deus.
Gao é a capital de um município com o mesmo nome, com 120.000 habitantes. A cidade tem 9.000 homens, dos quais 124 são brancos. Existe grande comércio de gado com as colónias inglesas, Nigéria e Costa do Ouro. A região tem caça abundante: antílopes, rinocerontes, hipopótamos, crocodilos, avestruzes, renas, etc. O carro despertou grande admiração em Gao. De todos os lados vinham perguntas de como fora possível cruzar o Sahara sem pneus. Admiravam o desempenho do Škoda e contavam que várias expedições falharam e deixaram carros na areia. Verifiquei os rolamentos das rodas dianteiras. Estava tudo bem.

16/02/47
Domingo. Descansei biblicamente. Durante o dia perguntava onde poderia conseguir pneus. Ao jantar, em casa do director da Transsaharienne, soube onde arranjá-los. Foi-me dito que o meu carro foi o 1º pequeno automóvel a realizar a proeza. Que coisa repetitiva! Afirmei que, sem a perda dos pneus teria chegado 2 dias antes, graças ao desempenho extraordinário do carro. O director falou que foi melhor chegar sem os pneus, pois isso confirmava o bom desempenho.
Trouxe comigo material promocional das estações de águas checas, o qual foi distribuído em todos os lugares entre Alger e Dakar. De maneira que, se alguém nos seguir, encontrará no profundo interior da África, fotos de Karlsbad (Boémia), geisers de 70 graus e 10 metros de altura, onde queimei a minha mão pela primeira vez. Que saudades...

17/02/47
7h. Procurámos os pneus e graças à boa disposição e ao bom relacionamento com o Director da Transsaharienne, consegui adquirir os Michelin especiais, maiores, com os quais não se pode exceder 70km/h. Comprei apenas 4, por economia, e calculei que iam durar até Dakar. Comecei a reparar os jantes. Removi os aros e troquei-os pelos de um velho Citroën, fixando-os por meio de rebites. O centro da roda ficou igual, só o aro foi trocado. Muito trabalho sob 60 graus ao sol. Mosquitos. Clima quente e seco. Durante toda a noite ouvem-se os tambores dos nativos. É perigoso sair à noite. Fomos a uma festa de dança dos negros. 5 dias no hotel custaram 6.000F Africanos.

22/02/47
À noite (18:30), saí de Gao. Íamos a Niamey, o caminho através das savanas. Muita areia, sempre ao longo do rio Niger. À distância víamos o mato em chamas. Aves e lagartos fugiam de nós. Caças diversas.

23/02/47
Saímos às 3h e perdemo-nos logo em areias profundas. Voltámos e continuámos ao longo do rio Niger. Às 5h30 furou outra câmara. Reparei-a e ficou pronta às 7h. Seguimos viagem. Às 8:30 chegàmos a Niamey, capital da colónia do Niger, sede do governo, centro comercial e cruzamento de caminhos do comércio. Bem situado. Tomei um banho no rio Niger, perto de lavadeiras negras seminuas. Em Niamey, às 15h, colocámos o carro na barcaça para cruzar o rio Niger e seguir viagem. 16h, na outra margem. Seguimos. Grande calor, não podemos viajar a velocidades superiores a 30/40 km/h. Os pneus ficam aquecidos e temos que parar. 100 km depois, furou um pneu traseiro. Tornei a colocar o velho pneu belga Engelhart na lona, mas andou somente 10 km. Escurecia. O que fazer? Do mato, de repente, surgiram faróis. O que era? Comecei a consertar o pneu, com o Marek a montar guarda com a lanterna e o cano de escape como arma. 23h30. Chegámos a Canchari, onde dormimos.

24/02/47
De manhã, dois pneus estavam vazios. Reparei-os. Às 8h prosseguimos. Vimos antílopes e nativos nus que paravam diante do carro e faziam continências. 13h: entrámos em Fada-N-Gurma. 2.900 habitantes. Lá existe uma missão católica evangélica. Às 15h, depois do calor, partimos novamente. Durante todo o dia inspeccionei os pneus. Vimos macacos em abundância. Depois de percorridos 300 Km chegámos a Oulga-Dou-Dou, às 23:30h. Oulga-Dou-Dou é a capital do estado com o mesmo nome e tem 536.000 habitantes, dos quais 300 são brancos. Centro comercial de gado, fábrica de tapetes e capachos. Tem também uma estação meteorológica.

25/02/47
7h. Parece que o calor está cada vez pior. Viajámos até às 11h e então parámos para descansar. Às 17h30 prosseguimos. Às 20h furou o pneu da roda dianteira e o conserto parecia impossível. Mesmo assim, dei um jeito e depois deitei-me com um cobertor. O meu passageiro dormiu dentro do carro. Sinto-me muito cansado, pois só eu conduzo e faço todas as reparações. Dormi tão profundamente que, ao acordar, não sabia onde estava. À 1h, acordei com uma gritaria desesperada. Marek disse que havia caça por perto. Acendemos os faróis e vimos que algo tinha saltado para dentro do mato. Não reconheci o vulto, mas Marek disse que era uma pantera grande e preta. Eu tremia. Pela primeira vez conheci o sabor do medo. Último cigarro. Pus a cama no chão e dormi. Havia mosquitos demais.

26/02/47
De manhã, comecei com os consertos dos pneus. Parecia impossível. Coloquei 2 pneus numa só roda e, por cima, correntes de neve para não perder as carcaças. Um horror, mas funcionou. Às 15 h chegámos à aldeia Pá, depois de rodar 77 km. O pneu avariado para nada servia. Os nativos de Pá deram-nos água e foram gentis. Pensei no que fazer. Passavam por lá carros da Transsaharienne e às 22h passou um que levou Marek até a cidade de Cougu Du para comprar um pneu. Marek voltou no dia 27, às 20h. A noite perto de Pá foi horrível. Dormi dentro do carro. Havia mosquitos por todos os lados. Às 23h prosseguimos. De imediato o motor enguiçou por falha do condensador, mas dentro de uma hora continuámos. A comida também acabou, mas o principal havia: água. De manhã, encontrámos nativos. Conversei por gestos. Ensinei-os a fazer contas em francês e a cantar em eslovaco. As crianças saltavam como macaquinhos e tentavam tirar os cromados do carro. Abri o último frasco de mel. Adoraram. Brincámos até à noite, na aldeia e cantámos ao som dos tambores. À meia noite chegámos a Bobo. 11.450 habitantes, 240 brancos. Caminho de ferro para Abidjan (800 km). Grande hospital para doenças do sono. Leões, elefantes, hipopótamos, panteras e macacos. Em Bobo dormimos no hotel e de manhã vimos que, à noite, no escuro, pisáramos escorpiões. Foi difícil trocar travellers checks, só um sírio os aceitou.»

[fotos: www.skodaspartak.cz / www.aeroservice.cz / www.flickr.cz]

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