É o bilhete de identidade dos automóveis. Uma simples chapa com dígitos em relevo que permite distinguir, uns dos outros, carros aparentemente iguais. Um código que, devidamente decifrado, permite saber o ano de construção de uma viatura, o número do quadro e do motor, a cor da carroçaria, o seu historial de proprietários e uma miríade de outras informações técnicas de interesse mais ou menos relevante. Porém, na maioria das situações, trata-se de um objecto sem valor, mesmo que, como tudo na vida, haja lugar a excepções.
É o caso da matrícula retratada neste post. Mesmo tratando-se de um acessório pertencente a um automóvel que já não existe e do qual pouco se sabe. Nunca o vi, nem sequer em fotografia. Sei, contudo, que esta 'chapa' pertenceu a um Skoda Octavia dos idos anos 60. Uma máquina que terá calcorreado milhares e milhares de quilómetros, devorando décadas de estórias até que, por simples exaustão ou mero abandono, foi depositada na desolação de uma sucata. Uma paisagem dura, preenchida a riscos de aço contorcido e superfícies de chapa ferrugenta, entremeada por jantes empenadas e pneus vazios. Um cenário pejado de carcaças agonizantes, abrigando pedaços de musgo em sombras fantasmagóricas desenhadas sob um sol lancinante, num território ressequido de amarguras. Só à espera que uma prensa implacável viesse executar uma sentença há muito anunciada...
Foi nesta ante-câmara de morte que ao dito automóvel, já irreversivelmente condenado ao desaparecimento – tal era o seu estado geral de degradação -, foi dado um último sopro de vida. Um derradeiro alento para um desfecho inadiável, embora acalentado a paliativos de dignidade, com direito a testamento lavrado, onde se duou tudo o que restou incólume aos excessos de uma longa vida de trabalho a outro ancião para quem o final de vida sorriu com um inesperado elixir de renovada juventude. Esse outro Octavia dos anos 60, agora reluzente e brioso em todo o seu esplendor, transporta consigo a pulsão deste companheiro já desaparecido, perpetuando o seu ADN através de alguns órgãos doados por aquele que, na hora do adeus, se revelou um amigo de verdade. Ou não fossem estes Octavias dois irmãos de sangue, nascidos há quase meio século em Mladá Boleslav.
Era a este automóvel, cujo último sopro bafejou de sorte o impecável Octavia Super do Adriano, que pertencia a matrícula retratada. E foi do Adriano, zeloso como ninguém do seu belíssimo espólio timbrado a Setas Aladas, que recebi este 'bilhete de identidade' ainda tão pujante de vida. Uma herança que vai muito para lá da beleza de uma matrícula moldada a aço estampado, com caracteres dispostos à força de rebites. Uma dádiva carregada de história[s] que provavelmente nunca descortinaremos, mas que ficará indelevelmente marcada por uma outra que relata uma sólida amizade, nascida da indomável força de um símbolo inebriante – o incontornável timbre da Seta Alada.
Obrigado, Adriano! Esta matrícula ainda tem muitas histórias para contar...
[foto: joão]
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